terça-feira, 8 de novembro de 2016

Um dia não haverá mais morte!

   
     Frau Hilbers era o nome dela.
     Quando cheguei no prédio e a vi pela primeira vez, fiquei com o olhar parado sem acreditar naquele cabelo todo cinza esculpido para cima, num penteado que me fazia pensar que talvez fosse alguma caracterização. Mas não... eram os cabelos dela mesmo! Paciente e cuidadosamente penteados para cima!
     Ficava eu imaginando quantas horas ela devia gastar pra fazer aquilo todo santo dia!
     Uma vez Júlia, minha filha mais nova, com seus 4 ou 5 anos, bateu em horário inapropiado na casa dela e veio toda feliz contando que tinha visto a Frau Hilbers de camisola longa e cabelo solto. Contava eufórica que o cabelo era muito comprido, liso e cinza! Tive que rir da Júlia. Acho que ela devia achar que era peruca ou sei lá! Me lembro vagamente dela perguntando pra Frau Hilbers porque ela fazia aquilo no cabelo dela!

     Logo que chegamos, quem nos recebeu mesmo foi uma outra senhora, que morava numa quitinete entre o nosso apartamento e o da Frau Hilbers. Era a Frau Weise. Percebi que as duas se encontravam quase todas as tardes na casa de uma delas para tomar cerveja. Duas ou três vezes estive com as duas na casa da Frau Weise, que com muita amabilidade chamava minhas filhas para lhes oferecer algum quitute e eu ia junto.
     Frau Weise logo se foi! Foi morar com os filhos, nos deixando dois móveis, muito úteis por sinal! Ficamos, então, nós e a Frau Hilbers naquele andar. Percebi que ela se entristeceu com a partida da vizinha de longa data.
     Depois chegou o Herr Abraham para morar na quitinete, mas aí já é outro capítulo!
   
     Sempre que nos encontrávamos no corredor ou nas escadas, ela nos parava e conversava muito. No começo eu não entendia nada, e ela, percebendo, conversava com as crianças, mas sempre tentando se comunicar comigo. Uma vez me disse para que eu me matriculasse no "Kindergarten", pois reparou que a Júlia, depois que começou a frequentar a escolinha aprendeu o alemão com muita rapidez! Frau Hilbers tinha bom humor e gargalhada gostosa, sem deixar porém de ser alemã!

     Descobrimos logo um ponto em comum: Ela amava cachorros! Sempre tinha alguns hospedados em sua casa e sempre batia lá em casa pra me apresentar seu novo hóspede ou pra "Paulinha" me dar bom dia! Quando não eram os hóspedes, eram os passeios! Ela se oferecia para passear com cachorros de amigos ou conhecidos. A "Paula" era a adorada dela, uma Dackel de uma de suas amigas que se parecia muito com uma que ela tinha tido e da qual não cansava de me mostrar fotos, contando sobre suas peripécias!

     Ela fazia aniversário no dia 31 de julho. Uma vez me enganei e levei a família toda no dia 30 pra porta dela, com presente, bolo e vela na mão e tocamos a campainha... ela abriu, deu um grito desesperado e fechou a porta na nossa cara dizendo: "Ach du meine Güte! Heute nicht! Das darf man nicht!" (Minha nossa! Hoje não! Não pode!). Ficamos sem entender tamanha grosseria, até que a ficha caiu! Na Alemanha as pessoas não comemoram o aniversário antes da data de maneira nenhuma! "Dá azar"! É estranho e inaceitável que alguém assim o faça!
     Voltamos no dia seguinte, mas ela porém já nos esperava! A surpresa perdeu totalmente a graça! Fora que tive que fazer outro bolo!

     Teve um dia que ela tocou a nossa campainha insistentemente. Abri a porta assustada e ela gritava, com lágrimas nos olhos: "Ein Vogel! Er stirbt wenn wir nichts machen! Ich kann das nicht! Bitte, bitte, hilf mir!" - Era um passarinho! Ele tinha entrado na sala pela varanda e não conseguia sair, e estava batendo no vidro. Ela não conseguia pegar o passarinho, ela tinha agonia, mas não queria que ele morresse e pediu que eu fizesse alguma coisa. Consegui salvá-lo, pra alívio de todos!

     A casa dela era cheia, mas muito cheia de bibelôs e pequenas bugingangas. Era também impecavelmente arrumada, pelo menos nas vezes em que entramos lá! No aniversário das meninas (e também no meu!) ela escolhia um daqueles bibelôs, comprava "Gummi Bärchen" (as balinhas de gelatina que minhas filhas até hoje amam) e deixava junto com o bibelô na nossa porta como presente pra elas! Claro que as meninas se alegravam mais ou quase somente com as balinhas... Alguns desses bibelôs tenho ainda comigo, como lembrança!

     Andava sempre muito bem arrumada, a começar, como podem ver, pelos cabelos! Uma vez consegui fotografá-la antes de sair para algum dos seus compromissos. Ela estava "toda chique", com colarzinho de pérolas e tudo; e ficou toda orgulhosa porque eu quis fotografá-la!

     Depois de muitos meses morando ali, ela me convidou pra tomar uma cerveja na casa dela. Ela gostava de tomar a cervejinha dela à tarde, coisas de alemão! Pensei que poderia ser uma boa maneira de nos aproximarmos mais e também de lhe fazer companhia e ouvi-la. Achava-a muito só! Aceitei. Depois dessa vez, me convidou algumas vezes mais, ora na casa dela, ora lá em casa. Se eu estivesse com as crianças, ela preferia lá em casa. Percebi, então, que ela fez daquilo um compromisso que, de mensal passou a ser quinzenal e depois semanal... toda terça-feira, lá pelas três ou três e meia da tarde a campainha tocava, eu abria a porta e lá estava a Frau Hilbers com duas latinhas de cerveja na mão e dois copos. Alemão tem um copo específico para cada tipo de cerveja. Uma vez ela trouxe, como me prometera, a cerveja berlinense (ela era de Berlin), aquela que se toma com "xarope", e trouxe junto as taças especiais pra essa cerveja e o canudinho! Me serviu mostrando toda orgulhosa como se preparava e como se bebia. Foi assim que conheci a Berliner Weisse!

     Ela amava a sopa de "ervilhas" do Zilbinho, meu marido. Pedia sempre que ele fizesse pra ela. E o Herr De Paula atendia ao desejo da velha senhora! Até que, nos nossos últimos dias por lá, ele foi passar a receita pra ela e ela descobriu que não era sopa de ervilhas, e sim de lentilhas... e ela detestava lentilhas! Rimos muito junto com ela dessa história!
     Para o Herr De Paula ela também deixava toda tarde o jornal "Bild" na porta. Ela lia todo santo dia e depois passava pra gente. Dizia que era um alemão mais fácil de entender! O jornal pingava sangue! Era desses bem sensacionalistas e com muita fofoca! Ríamos muito de tudo isso, mas a linguagem realmente era bem mais fácil do que a de outros jornais!
      Ela soube então, que eu estava prestes a fazer a prova de proficiência do alemão pra começar meu mestrado. Aí é que achou que o jornal podia mesmo ajudar! Não falhava um dia! E no dia da prova, saindo de casa, ouvi a porta dela se abrir. Ela apontou o rosto na porta com um sorriso e me disse: "Vai dar tudo certo! Fique calma!". Então ouvi pela primeira vez a expressão "Ich drücke dir die Daumen", a qual fui tentando decifrar pelo caminho e que, fiquei sabendo logo depois, quer dizer "Estarei torcendo por você", apesar de a tradução literal ser "Estou apertando o dedão por você"!!!

     Tínhamos uma "inimiga" em comum, mas era uma história triste pra mim. Nossa vizinha, Frau Rittendorf, que era uma figura muito estranha e que morava embaixo do nosso apartamento, teria sido por longo tempo uma grande amiga da Frau Hilbers. Algo aconteceu entre as duas que as fez inimigas uma da outra. Era alguma coisa relacionada à mãe de cada uma delas. É certo que a Frau Rittendorf tornou a nossa vida um pouco mais difícil em alguns momentos e a Frau Hilbers não se conformava com a maneira como ela nos tratava, por sermos estrangeiros e termos crianças em casa. Frau Hilbers a chamava de louca, demente, insuportável e outros adjetivos mais. E eu ficava torcendo muito para que as duas se entendessem um dia... acho que isso nunca aconteceu, infelizmente! Em tempo: Nos nossos últimos dias no apartamento, Frau Rittendorf me chamou, me deu um abraço (!) e me pediu perdão por ter tornado nossa vida tão difícil ali no prédio! Aquilo foi emocionante!!!

     Frau Hilbers visitava regularmente o túmulo dos pais. Era uma de suas "obrigações" semanais manter o túmulo limpo e esse tipo de coisa. Era também um dos temas constantes em suas conversas. Mas não se cansava de falar da loucura da vizinha "inimiga", que mantinha o túmulo da mãe iluminado à noite! E esse assunto rendia muitos minutos de "monólogo" dela!

     Me lembro da gente em casa, conversando e ela, de repente, mandando as meninas não perturbarem a gente e  falarem mais baixo! Eu só ria da cara assustada das minhas filhas olhando pra ela e... obedecendo! Uma vez ela completou a ordem me dizendo: "Quando você ficar mais velha, você vai me entender! A gente começa a ficar mais sensível com barulho e o barulho começa a incomodar e irritar a gente! Elas precisam falar mais baixo, parar de gritar quando os adultos estão conversando!" E tenho me lembrado dessa fala dela cada vez mais frequentemente...

     Após 3 anos nos chamando de Frau Hilbers pra cá e Frau De Paula pra lá, ela sugeriu que nos tratássemos pelos nossos primeiros nomes. Ela começou, então, a me chamar de Marô. Isso me encheu de satisfação, pois demonstrava uma certa liberdade dela comigo. Tínhamos, finalmente, certa intimidade uma com a outra. Mas... quem disse que eu conseguia chamá-la de Gisela??? Nunca consegui! Ela continuou sendo mesmo a Frau Hilbers! Mas ela ria e se divertia com isso também!

     Quando anunciamos que em breve voltaríamos para o Brasil, ela cismou que tinha que me ensinar a cozinhar as típicas comidas alemãs... e assim foi! Ela fazia uma enorme compra com os ingredientes necessários e marcava a hora pra eu chegar na casa dela, pra que eu cozinhasse com ela e a gente jantasse juntas! Assim fiz pela primeira vez Goulash e mais uns dois pratos típicos que já não me lembro mais... Nunca mais cozinhei nada disso aqui no Brasil, mas juro que tenho tudo anotado "tim tim por tim tim" como ela me ensinou!

     Já nos nossos últimos dias, quando precisamos nos desfazer dos móveis e pintar o apartamento, mandamos as meninas para a casa dos Nückels, amigos queridos. Trabalhávamos o dia todo pintando e arrumando o apartamento, já vazio, para entregá-lo. Nesses dias ela fez questão de nos oferecer o jantar, sabedora do nosso cansaço e fome no final do dia. Mesmo antes de darmos o dia como encerrado, ela vinha toda satisfeita dizendo "Quando quiserem, podem vir! Já está tudo pronto!". E nos deparávamos com a mesinha da sua cozinha lindamente posta pra comermos a refeição que ela mesma havia preparado! Tanto carinho havia ali naquela mesa!

     Já no Brasil, quando ligávamos no seu aniversário ou no natal, ela fazia voz de choro e sempre dizia: "Nunca mais tive vizinhos como vocês! Nunca mais! Vocês me fazem muita falta"! Uma das vezes que a visitamos quando voltamos à Alemanha, ela repetia incessantemente essa frase...

     Tantas, tantas histórias! Tanta vida compartilhada!

     Pois é...

     Ontem recebi de uma amiga da minha filha, uma reportagem do jornal da cidade (Hannover) sobre um incêndio no último dia 24 lá em Ahlem, bairro onde morávamos. O incêndio foi na rua Lohgrund, número 3... o nosso prédio! E quando vi as fotos, percebi que o fogo vinha das janelas do apartamento da Frau Hilbers... Os bombeiros a levaram ainda com vida para o hospital, mas ela não resistiu...

    Viver 76 anos para morrer dessa maneira é realmente cruel!

     É... sei que são pensamentos sem lógica que me vem à mente por estar ainda sob efeito do choque, mas mesmo assim! Me dói tanto imaginá-la ali dentro, tentando fazer algo para apagar o fogo ou para fugir dele, sem conseguir! Difícil não sentir uma pontada no coração! Difícil impedir que as lágrimas brotem! Pobre Frau Hilbers!!! Ela nos fez tão bem!

     Minha vó sempre dizia que depois de certa idade a gente tem que se acostumar com as notícias dos óbitos, que só aumentam! E fico pensando se já cheguei lá... mas "só" tenho 50!!! Entendo que o raciocínio dela tem muita lógica, mas não sei se um dia me acostumo! Perder gente querida (e animais) é difícil em qualquer tempo...

     É isso! Esses últimos dias parece que a morte resolveu se impor, dizer "Hei! A vida é bela mas estou aqui"! Dias esses nos quais tenho tido uma sensação estranha, como se sorrisse e me alegrasse num momento inadequado e sentisse o coração pesado e chorasse na hora errada. Muitas coisas poderia eu dizer... mas no momento meu coração só chora! Porém, devo declarar que me sinto muito grata por ter tido a Frau Hilbers em nossas vidas e por todo o bem que ela nos fez!

     Três "baixas" em apenas um mês! Ontem, 6 de novembro, me deparo com a lembrança de 1 mês da morte do Reve. Hoje minha família anunciou a Missa de 7o dia do meu tio e, coincidentemente, hoje também, quando me sinto tão esquisita frente a tudo isso, foi-me lembrado pela Liz Valente que faz dez anos que o Lelê, jovem amigo querido, se foi em virtude de um cancêr... (Dez anos de despedida)

     E por isso... e assim... sinto-a, a morte, rondando, ... não a mim, mas esse meu tempo...
     É esquisito lidar com ela!
     E porque sei que escrever é, entre outras coisas, terapêutico, cá estou, para afugentar os fantasmas e um pouco da tristeza do coração!
   
     E deixo-me consolar novamente (e quem sabe você também) com o maravilhoso texto  "O Enterro da Morte", cuja autoria é de um dos falecidos desses últimos dias, o Reverendo Élben César, meu querido Reve. Eu creio, como ele, que um dia, diremos juntos "Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão? (1Co15.55).
   
     Eu creio, que um dia "não haverá mais morte, nem tristeza, nem choro, nem dor, pois a antiga ordem já passou" (Ap. 21.4).


9 comentários:

  1. Marô, que texto lindo... Nem sei bem o que dizer por tantas coisas que senti lendo esse texto. Lembranças de vocês, lembranças da Alemanha, um pouco de identificação com a morte chegando para algumas pessoas próximas... Vontade de estar contigo e te abraçar. Continue escrevendo, Marô. Compartilhe tuas angústias e tuas esperanças. Revelas aqui o que de fato importa na vida: os afetos. Fique bem! Glaíse

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    1. Obrigada pelo seu abraço, minha querida!!! E que nossos afetos permaneçam!!! <3

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    2. Texto muito bonito e bem escrito, Marô. Gostei muito. A única resposta para a morte , que pode nos tranquilizar é , mesmo, saber que ela é a passagem para Vida Eterna, para o encontro com o Pai. Continue escrevendo e publique seus textos. Abrços, da prima Mirian.

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  2. Amei tb,estou com os olhos transbordando de lágrimas!
    Bjos com saudades.

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  3. Marô, quanta vida! Quantas histórias gostosas de serem vividas! Quantas lembranças e afetos! Esse amor é mais forte que a morte! Com certeza, tempos melhores virão! Lindo texto! Beijo no coração ❣️����������

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    1. Sim, tempos melhores já são... tristezas e alegrias se revezam e isso é vida! Beijos grande, minha querida!

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  4. Gostei muito da descrição de como se desenvolveu a amizade entre vocês! Imagino a falta que vocês fizeram para ela, e também essa sensação de sentir a morte rondando!!! Mas a nossa esperança é mais forte que a morte e é isso que aquieta meu coração!!! Um abraço apertado!

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    1. Sim, a nossa esperança é a morte da morte! Saudades!!! Beijo grande!

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