quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Basta pouco!

     E o pouco já é "um tanto" tão  bom!!!
     Pois é... estou aproveitando meu(s) ano(s) sabáticos (resolvi chamar assim pra me sentir menos inútil! rsrs) e fazendo muitas coisas que eu sempre quis e, teoricamente, quase nunca tive muito tempo de fazer. Ando lendo mais que antes, porém, menos do que gostaria; ando escrevendo (um pouquinho mais) algumas "bobagens" que alguns de vocês bondosamente gastam tempo lendo e alguns ainda se dão ao gentil trabalho de comentar aqui e acolá, o que muito me alegra e encoraja; ando crochetando (aliás, depois de décadas desejando, consegui aprender! Eu só sabia tricotar. Mas "taí" duas coisas que me fazem sentar por horas a fio! Amo! - e que a minha fisioterapeuta não leia isso!!!); e, além de "tudo isso" e outras coisinhas mais, como cuidar da Lola (a cachorra), da casa e "tals", ainda tenho visto séries na Netflix!
     Na verdade, elas são as culpadas de eu estar lendo menos do que gostaria, escrevendo menos do que sinto vontade e fazendo mais crochet do que deveria em frente à TV, já que crochetar pode me causar uma dorzinha aqui e outra acolá (eufemismos à parte, permitam-me... já fiz cinquenta!)
     Bem, já vi várias séries que me agradaram. O problema é que sou meio compulsiva com as coisas das quais eu gosto, me distraio muito facilmente com coisas inúteis e tenho um problema sério de procrastinação... daí vocês podem povoar o imaginário de vocês com as consequências que brotam desse ser tão intenso e inconstante! Vou denunciar uma delas: uma série com cinco temporadas, cada uma com 15 a 20 episódios, pode durar apenas um mês ou menos! 😱
     Há um ano uma amiga do pilates me recomendou a série "Call the Midwife". Na época, estava envolvida com duas outras séries, uma que via com o marido pra relaxar junto e outra que via só, pra relaxar só! Nem me lembro direito quais! Quando uma delas acabou, resolvi seguir o conselho da minha amiga Lúcia, do pilates. Vi o primeiro episódio... e não me cativou de primeira. Acredito que por causa da natureza das outras séries que eu tinha acabado de ver. Ficou pra depois!
     Bem, o depois chegou. Já estou na quarta temporada e eu chorei em TODOS os episódios até agora! Cada episódio mexe comigo de maneira diferente. Às vezes choro de soluçar, às vezes os olhos só lacrimejam, mas nenhum passa em branco! Na verdade, nunca consegui ver um vídeo de bebê nascendo e sair ilesa! Sempre me emociono! Mas na série a emoção não é só por causa dos bebês, mas de vários outros detalhes que demonstram uma sensibilidade linda que comovem! Fora que, ao acompanhar o dia a dia das freiras, bate aquela saudade do tempo maior de meditação que não tenho tido... (Não! Não estou sendo paga pela BBC e nem pela Netflix pra "propagandear"!)
     Mas onde quero mesmo chegar é no meu momento e no primeiro episódio da quarta temporada.
     Ultimamente tenho me sentido mais do que nunca "como criança" na presença do Pai e feito várias questões ao meu Senhor, coisas que achei que nunca mais perguntaria a Ele, questões infantis mesmo! Depois que você caminha anos a fio na fé, lê e estuda muito a Bíblia, ouve horas acumuladas de excelentes (outras nem tanto) pregações, bate "papo cabeça" com gente séria e que entende da coisa, gasta tempo com meditar na Palavra, lê excelentes (outros nem tanto) livros, trabalha intensamente "na obra para a expansão do Reino de Deus" e coisas afins, a gente acha (só acha!) que sabe alguma coisa e que algumas questões não deveriam mais ficar sem resposta. Aí se depara com certas questões que parecem de uma infantilidade sem tamanho, mas que na verdade ficaram escondidinhas lá dentro e nunca foram respondidas. A gente esbarra na nossa prepotência e abaixa a crista! A gente começa a duvidar das nossas certezas. E nos três últimos anos, longe do "campo de batalha", realmente nos bastidores, tenho me permitido tais questões, inclusive questionando muitas convicções, sem nenhuma censura e com muita liberdade no meu coração! Que delícia!
     Calma! Não quero me tornar uma freira anglicana como as que há na série, mesmo porque me faltam convicção e vocação (rá!), porém não a admiração!
     Contextualizando: Na série há um convento anglicano onde moram freiras e enfermeiras, todas parteiras, que compartilham suas vidas ali. Se passa na década de 50.
     Nesse primeiro episódio da quarta temporada, uma das enfermeiras faz questionamentos se seria vocacionada. Ela está tentada a vestir o hábito e, com tranquilidade, porém querendo decidir, ela se questiona!
     Aí vêm duas cenas maravilhosas nas quais pude sentir o hálito do Espírito Santo soprando na minha direção.
     Desculpe a pieguice, mas vou ter que descrever as cenas, senão minhas palavras não terão sentido.
     Na primeira cena, depois que a irmã superiora machuca sua mão e não consegue dormir por causa da dor, ela sai à procura de uma aspirina. Ela, então, encontra a enfermeira na capela e se dá mais ou menos o seguinte diálogo:

E - Eu não conseguia dormir.
I - Eu também não. Estava indo buscar aspirinas.
E - Para a sua mão?
I - A dor pode ser um sinal de que o ferimento está fechando. Vai passar!
E - Eu fico pensando que vai passar.
I - O seu questionamento?
E - A vontade. Eu nunca desejei algo tanto assim em minha vida.
I - Me parece que se é isso que está sentindo, o questionamento acabou.
E - Mas... não sei porque Ele me quer, Irmã. Não tenho nada pra dar. Nada pra sacrificar ou oferecer em troca de todo o amor Dele.
I - Uma vez eu pensei que sabia o que Deus planejava pra mim. Mas eu não sabia. Eu pensava que sabia o que era amor. Mas não sabia. A certeza é fugaz. É por isso que devemos ter fé!
(os grifos são por minha conta!)

     Pára tudo!!! Volta a "fita" e vê tudo de novo!
          1) Temos que aprender a "ler" as nossas dores! Elas podem nos conduzir a curas autênticas! Elas nos revelam nossa fraqueza e nossa força ao mesmo tempo! Ela nos indica que somos movidos pelos nossos afetos, pelos envolvimento que temos ou deixamos de ter com algo ou alguém, elas nos revelam quão sérios são os nossos compromissos... Se não há dor é porque, provavelmente, não houve afeto, não houve envolvimento, não houve compromisso! Parei, chorei e agradeci ao Pai cada dor já sentida no corpo e na alma! Não de forma masoquista ou pseudo-piedosa, mas com rara gratidão no coração! Estou viva e me permito, talvez não sempre, mas com frequência, experienciar intensamente todos os meus afetos!
          2) Tive a nítida certeza de que, se antes sentia que não tinha nada para oferecer a Jesus, hoje tenho menos ainda. Hoje ando mais cética, mais preguiçosa, mais acomodada, mais preconceituosa, menos compassiva e menos tolerante. Uéé? Mas Ele não me transformou? Claro! Ele mudou tudo em mim, mas não é em todo o tempo que dou o retorno devido e, ultimamente, é mais a velha Marô mesmo que emerge com frequência, infelizmente! Contraditório? Quem sabe?! Talvez seja tão somente uma maior consciência de quem realmente sou, sem perder de vista a busca por me tornar alguém melhor... conjecturas da vida!
          3) Mas aí vem a afirmação da Irmã... Achei simplesmente fantástico! A certeza é fugaz, minha gente!!! Já pensou afirmar isso nos dias de hoje? É querer levar chumbo! Mas é exatamente isso! Fora que as nossas "certezas" ainda podem nos levar à arrogância, à soberba! Parei e orei. Pedi ao Pai fé! E acrescentei: "E que esta gere no meu coração amor profundo por ti todos os dias, para que eu viva sem tantas certezas e de acordo com a transformação que já recebi de Ti, por meio do Teu Amor!"
     A outra cena que me impactou e que, na sequência do episódio faz com que a enfermeira se decida, foi a seguinte:
     A enfermeira está tentando ajudar um casal de meia-idade que vivia numa casa de acolhimento às pessoas pobres com dificuldades e pertubações mentais e emocionais. A casa fora fechada e eles estavam vivendo precariamente. A mulher acha que está grávida, o que seria para ela um consolo, mas na verdade não está. Quando recebe esta notícia, sai correndo pra rua tentando fugir da sua tristeza. O marido corre atrás dela e também a enfermeira, que acaba se deparando com um lindo diálogo entre marido e mulher.

     O homem grita:
- Eu te amo!
     Ele a alcança, os dois se sentam largados no chão e ela diz:
- Não diga que me ama! Por favor querido, não diga que me ama!
- Não diga isso.
- Mas não posso lhe dar nada. Não posso preencher nenhuma necessidade.
- Você me dá o que pode. Eu lhe dou o que posso. Minha benção é que você me permita isso. Não peço mais nada e nós dois nos tornamos completos!

     Percebeu? Entendeu?
     Fiquei inerte e depois recolhendo os caquinhos que se espalharam com o golpe no coração! (quanto drama! rs) Mas é verdade! Os paralelos foram traçados! Me emocionei porque ouvi a voz do meu Pai falando comigo: "Me permita te dar tudo o que tenho! Me permita somente te Amar com meu Amor Incondicional!"
     Assim como aquela mulher, nossa tendência é nos constrangermos! Infinitas vezes já me senti constrangida com esse maravilhoso Amor, porque o senti no canto mais profundo da minha alma, sem dele me sentir merecedora! "Como assim Ele me ama???" é uma reação bem conhecida minha!
Eu, de fato, não posso e nada tenho para oferecer ao meu Senhor, a não ser minha infidelidade, minha carência, minhas dúvidas, minha inconstância...
     Muitas vezes quando Ele fala tão claramente "Eu te amo", a minha reação imatura é responder: "Como assim? Eu não mereço o Seu amor! Pára, porque isso me constrange!"
     E o ouço retrucando:
     "Permita-me apenas te dar o que eu posso e quero te dar! Permita-me estar contigo! Permita-nos ter comunhão! Isso me basta! Isso te bastará!"

     E então nenhuma questão mais importa...

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Ah se eu tivesse asas...

     Ontem um pombo cagou na minha cabeça!
     Ontem o Trump foi eleito presidente dos EUA!
     O que uma coisa tem a ver com a outra?
     NADA!
     A não ser que você acredite em presságios ou coisa do tipo! Mas nem assim, porque quando da arte do pombo, o Trump já era presidente...
     Mas teve a observação do meu cunhado alemão que mora na América, quando eu indignada reclamei do pombo: "Isso não foi nada Marô. Por aqui foi uma águia que cagou em cima dos EUA inteiro e isso vai feder por quatro anos!"
     Sim, porque reclamei que a coisa fedia muito - O cocô do pombo, claro!
     Minha mãe me disse que "é sorte"! Só não entendi ainda de quem...
     Isso nunca tinha me acontecido antes; e me senti tão humilhada, fiquei tão indignada quando vi aquele pombo me olhando com aquela cara de "peguei mais uma" que tive vontade de sair correndo atrás dele para dar-lhe um belo dum safanão... o problema é que eu não nasci com asas!
     E fui caminhando, pensando se voltava pra casa ou se cumpria minhas intenções quando saí... e continuei andando passando no cabelo um saco plástico (que seria destinado para o cocô, não do pombo, porque ninguém sai de casa com um saco plástico prevendo que o um pombo vai usar a sua cabeça como banheiro, mas da cachorra, com quem eu passeava) pra ver se conseguia tirar aquele troço nojento da minha cabeça. E o trem fedia!!! Fedia muito e eu fazia vômito!
     Naquele intervalo resolvi voltar pra casa e desisti umas 15 vezes, até chegar na farmácia, outro destino planejado, onde a atendente me deu um papel toalha e me ajudou a melhorar um pouquinho a situação. A vontade de meter a cabeça embaixo do chuveiro era incontrolável...
     E fiquei me lembrando de uma história de quando meu marido era pequeno, talvez com uns 8 anos. Ele morava numa casa com um quintal cheio de árvores, terra... essas coisas gostosas de tempos atrás! Ele costumava brincar com seus carrinhos nesse quintal. Construía estradas, fazia túneis e garagens para guardar os carrinhos. Após alguns dias de chuva, ele foi ao quintal pra procurar seus carrinhos que estavam em um dos "túneis" por ele construído e, ao colocar a mão lá dentro, sentiu uma coisa gelada e úmida. Tirou a mão rápido e viu um sapão saindo lá de dentro! Levou um susto e saiu correndo aos prantos, com o braço estendido, mantendo a mão o mais longe possível do corpo e gritando: "Corta a minha mão! Corta a minha mão! Eu não quero mais a minha mão!"
     E o que isto tem a ver com a história do pombo?
    TUDO! "Corta a minha cabeça! Eu não quero mais a minha cabeça!", foi o que tive vontade de gritar naquele momento, só que eu não sou criança e cabeça é muito diferente de mão né? Rá! (Se é!). Provavelmente seria levada para um manicômio, só não sei se com ou sem cabeça! Mas com as mãos, certamente!
     Mas se eu tivesse asas... ah, se eu tivesse asas!!!
     Pelo menos serviu pra mudar o tom triste e melancólico das últimas postagens...
     E a cabeça ainda está por aqui - eu acho! - porém agora limpa e cheirosa novamente!

terça-feira, 8 de novembro de 2016

Um dia não haverá mais morte!

   
     Frau Hilbers era o nome dela.
     Quando cheguei no prédio e a vi pela primeira vez, fiquei com o olhar parado sem acreditar naquele cabelo todo cinza esculpido para cima, num penteado que me fazia pensar que talvez fosse alguma caracterização. Mas não... eram os cabelos dela mesmo! Paciente e cuidadosamente penteados para cima!
     Ficava eu imaginando quantas horas ela devia gastar pra fazer aquilo todo santo dia!
     Uma vez Júlia, minha filha mais nova, com seus 4 ou 5 anos, bateu em horário inapropiado na casa dela e veio toda feliz contando que tinha visto a Frau Hilbers de camisola longa e cabelo solto. Contava eufórica que o cabelo era muito comprido, liso e cinza! Tive que rir da Júlia. Acho que ela devia achar que era peruca ou sei lá! Me lembro vagamente dela perguntando pra Frau Hilbers porque ela fazia aquilo no cabelo dela!

     Logo que chegamos, quem nos recebeu mesmo foi uma outra senhora, que morava numa quitinete entre o nosso apartamento e o da Frau Hilbers. Era a Frau Weise. Percebi que as duas se encontravam quase todas as tardes na casa de uma delas para tomar cerveja. Duas ou três vezes estive com as duas na casa da Frau Weise, que com muita amabilidade chamava minhas filhas para lhes oferecer algum quitute e eu ia junto.
     Frau Weise logo se foi! Foi morar com os filhos, nos deixando dois móveis, muito úteis por sinal! Ficamos, então, nós e a Frau Hilbers naquele andar. Percebi que ela se entristeceu com a partida da vizinha de longa data.
     Depois chegou o Herr Abraham para morar na quitinete, mas aí já é outro capítulo!
   
     Sempre que nos encontrávamos no corredor ou nas escadas, ela nos parava e conversava muito. No começo eu não entendia nada, e ela, percebendo, conversava com as crianças, mas sempre tentando se comunicar comigo. Uma vez me disse para que eu me matriculasse no "Kindergarten", pois reparou que a Júlia, depois que começou a frequentar a escolinha aprendeu o alemão com muita rapidez! Frau Hilbers tinha bom humor e gargalhada gostosa, sem deixar porém de ser alemã!

     Descobrimos logo um ponto em comum: Ela amava cachorros! Sempre tinha alguns hospedados em sua casa e sempre batia lá em casa pra me apresentar seu novo hóspede ou pra "Paulinha" me dar bom dia! Quando não eram os hóspedes, eram os passeios! Ela se oferecia para passear com cachorros de amigos ou conhecidos. A "Paula" era a adorada dela, uma Dackel de uma de suas amigas que se parecia muito com uma que ela tinha tido e da qual não cansava de me mostrar fotos, contando sobre suas peripécias!

     Ela fazia aniversário no dia 31 de julho. Uma vez me enganei e levei a família toda no dia 30 pra porta dela, com presente, bolo e vela na mão e tocamos a campainha... ela abriu, deu um grito desesperado e fechou a porta na nossa cara dizendo: "Ach du meine Güte! Heute nicht! Das darf man nicht!" (Minha nossa! Hoje não! Não pode!). Ficamos sem entender tamanha grosseria, até que a ficha caiu! Na Alemanha as pessoas não comemoram o aniversário antes da data de maneira nenhuma! "Dá azar"! É estranho e inaceitável que alguém assim o faça!
     Voltamos no dia seguinte, mas ela porém já nos esperava! A surpresa perdeu totalmente a graça! Fora que tive que fazer outro bolo!

     Teve um dia que ela tocou a nossa campainha insistentemente. Abri a porta assustada e ela gritava, com lágrimas nos olhos: "Ein Vogel! Er stirbt wenn wir nichts machen! Ich kann das nicht! Bitte, bitte, hilf mir!" - Era um passarinho! Ele tinha entrado na sala pela varanda e não conseguia sair, e estava batendo no vidro. Ela não conseguia pegar o passarinho, ela tinha agonia, mas não queria que ele morresse e pediu que eu fizesse alguma coisa. Consegui salvá-lo, pra alívio de todos!

     A casa dela era cheia, mas muito cheia de bibelôs e pequenas bugingangas. Era também impecavelmente arrumada, pelo menos nas vezes em que entramos lá! No aniversário das meninas (e também no meu!) ela escolhia um daqueles bibelôs, comprava "Gummi Bärchen" (as balinhas de gelatina que minhas filhas até hoje amam) e deixava junto com o bibelô na nossa porta como presente pra elas! Claro que as meninas se alegravam mais ou quase somente com as balinhas... Alguns desses bibelôs tenho ainda comigo, como lembrança!

     Andava sempre muito bem arrumada, a começar, como podem ver, pelos cabelos! Uma vez consegui fotografá-la antes de sair para algum dos seus compromissos. Ela estava "toda chique", com colarzinho de pérolas e tudo; e ficou toda orgulhosa porque eu quis fotografá-la!

     Depois de muitos meses morando ali, ela me convidou pra tomar uma cerveja na casa dela. Ela gostava de tomar a cervejinha dela à tarde, coisas de alemão! Pensei que poderia ser uma boa maneira de nos aproximarmos mais e também de lhe fazer companhia e ouvi-la. Achava-a muito só! Aceitei. Depois dessa vez, me convidou algumas vezes mais, ora na casa dela, ora lá em casa. Se eu estivesse com as crianças, ela preferia lá em casa. Percebi, então, que ela fez daquilo um compromisso que, de mensal passou a ser quinzenal e depois semanal... toda terça-feira, lá pelas três ou três e meia da tarde a campainha tocava, eu abria a porta e lá estava a Frau Hilbers com duas latinhas de cerveja na mão e dois copos. Alemão tem um copo específico para cada tipo de cerveja. Uma vez ela trouxe, como me prometera, a cerveja berlinense (ela era de Berlin), aquela que se toma com "xarope", e trouxe junto as taças especiais pra essa cerveja e o canudinho! Me serviu mostrando toda orgulhosa como se preparava e como se bebia. Foi assim que conheci a Berliner Weisse!

     Ela amava a sopa de "ervilhas" do Zilbinho, meu marido. Pedia sempre que ele fizesse pra ela. E o Herr De Paula atendia ao desejo da velha senhora! Até que, nos nossos últimos dias por lá, ele foi passar a receita pra ela e ela descobriu que não era sopa de ervilhas, e sim de lentilhas... e ela detestava lentilhas! Rimos muito junto com ela dessa história!
     Para o Herr De Paula ela também deixava toda tarde o jornal "Bild" na porta. Ela lia todo santo dia e depois passava pra gente. Dizia que era um alemão mais fácil de entender! O jornal pingava sangue! Era desses bem sensacionalistas e com muita fofoca! Ríamos muito de tudo isso, mas a linguagem realmente era bem mais fácil do que a de outros jornais!
      Ela soube então, que eu estava prestes a fazer a prova de proficiência do alemão pra começar meu mestrado. Aí é que achou que o jornal podia mesmo ajudar! Não falhava um dia! E no dia da prova, saindo de casa, ouvi a porta dela se abrir. Ela apontou o rosto na porta com um sorriso e me disse: "Vai dar tudo certo! Fique calma!". Então ouvi pela primeira vez a expressão "Ich drücke dir die Daumen", a qual fui tentando decifrar pelo caminho e que, fiquei sabendo logo depois, quer dizer "Estarei torcendo por você", apesar de a tradução literal ser "Estou apertando o dedão por você"!!!

     Tínhamos uma "inimiga" em comum, mas era uma história triste pra mim. Nossa vizinha, Frau Rittendorf, que era uma figura muito estranha e que morava embaixo do nosso apartamento, teria sido por longo tempo uma grande amiga da Frau Hilbers. Algo aconteceu entre as duas que as fez inimigas uma da outra. Era alguma coisa relacionada à mãe de cada uma delas. É certo que a Frau Rittendorf tornou a nossa vida um pouco mais difícil em alguns momentos e a Frau Hilbers não se conformava com a maneira como ela nos tratava, por sermos estrangeiros e termos crianças em casa. Frau Hilbers a chamava de louca, demente, insuportável e outros adjetivos mais. E eu ficava torcendo muito para que as duas se entendessem um dia... acho que isso nunca aconteceu, infelizmente! Em tempo: Nos nossos últimos dias no apartamento, Frau Rittendorf me chamou, me deu um abraço (!) e me pediu perdão por ter tornado nossa vida tão difícil ali no prédio! Aquilo foi emocionante!!!

     Frau Hilbers visitava regularmente o túmulo dos pais. Era uma de suas "obrigações" semanais manter o túmulo limpo e esse tipo de coisa. Era também um dos temas constantes em suas conversas. Mas não se cansava de falar da loucura da vizinha "inimiga", que mantinha o túmulo da mãe iluminado à noite! E esse assunto rendia muitos minutos de "monólogo" dela!

     Me lembro da gente em casa, conversando e ela, de repente, mandando as meninas não perturbarem a gente e  falarem mais baixo! Eu só ria da cara assustada das minhas filhas olhando pra ela e... obedecendo! Uma vez ela completou a ordem me dizendo: "Quando você ficar mais velha, você vai me entender! A gente começa a ficar mais sensível com barulho e o barulho começa a incomodar e irritar a gente! Elas precisam falar mais baixo, parar de gritar quando os adultos estão conversando!" E tenho me lembrado dessa fala dela cada vez mais frequentemente...

     Após 3 anos nos chamando de Frau Hilbers pra cá e Frau De Paula pra lá, ela sugeriu que nos tratássemos pelos nossos primeiros nomes. Ela começou, então, a me chamar de Marô. Isso me encheu de satisfação, pois demonstrava uma certa liberdade dela comigo. Tínhamos, finalmente, certa intimidade uma com a outra. Mas... quem disse que eu conseguia chamá-la de Gisela??? Nunca consegui! Ela continuou sendo mesmo a Frau Hilbers! Mas ela ria e se divertia com isso também!

     Quando anunciamos que em breve voltaríamos para o Brasil, ela cismou que tinha que me ensinar a cozinhar as típicas comidas alemãs... e assim foi! Ela fazia uma enorme compra com os ingredientes necessários e marcava a hora pra eu chegar na casa dela, pra que eu cozinhasse com ela e a gente jantasse juntas! Assim fiz pela primeira vez Goulash e mais uns dois pratos típicos que já não me lembro mais... Nunca mais cozinhei nada disso aqui no Brasil, mas juro que tenho tudo anotado "tim tim por tim tim" como ela me ensinou!

     Já nos nossos últimos dias, quando precisamos nos desfazer dos móveis e pintar o apartamento, mandamos as meninas para a casa dos Nückels, amigos queridos. Trabalhávamos o dia todo pintando e arrumando o apartamento, já vazio, para entregá-lo. Nesses dias ela fez questão de nos oferecer o jantar, sabedora do nosso cansaço e fome no final do dia. Mesmo antes de darmos o dia como encerrado, ela vinha toda satisfeita dizendo "Quando quiserem, podem vir! Já está tudo pronto!". E nos deparávamos com a mesinha da sua cozinha lindamente posta pra comermos a refeição que ela mesma havia preparado! Tanto carinho havia ali naquela mesa!

     Já no Brasil, quando ligávamos no seu aniversário ou no natal, ela fazia voz de choro e sempre dizia: "Nunca mais tive vizinhos como vocês! Nunca mais! Vocês me fazem muita falta"! Uma das vezes que a visitamos quando voltamos à Alemanha, ela repetia incessantemente essa frase...

     Tantas, tantas histórias! Tanta vida compartilhada!

     Pois é...

     Ontem recebi de uma amiga da minha filha, uma reportagem do jornal da cidade (Hannover) sobre um incêndio no último dia 24 lá em Ahlem, bairro onde morávamos. O incêndio foi na rua Lohgrund, número 3... o nosso prédio! E quando vi as fotos, percebi que o fogo vinha das janelas do apartamento da Frau Hilbers... Os bombeiros a levaram ainda com vida para o hospital, mas ela não resistiu...

    Viver 76 anos para morrer dessa maneira é realmente cruel!

     É... sei que são pensamentos sem lógica que me vem à mente por estar ainda sob efeito do choque, mas mesmo assim! Me dói tanto imaginá-la ali dentro, tentando fazer algo para apagar o fogo ou para fugir dele, sem conseguir! Difícil não sentir uma pontada no coração! Difícil impedir que as lágrimas brotem! Pobre Frau Hilbers!!! Ela nos fez tão bem!

     Minha vó sempre dizia que depois de certa idade a gente tem que se acostumar com as notícias dos óbitos, que só aumentam! E fico pensando se já cheguei lá... mas "só" tenho 50!!! Entendo que o raciocínio dela tem muita lógica, mas não sei se um dia me acostumo! Perder gente querida (e animais) é difícil em qualquer tempo...

     É isso! Esses últimos dias parece que a morte resolveu se impor, dizer "Hei! A vida é bela mas estou aqui"! Dias esses nos quais tenho tido uma sensação estranha, como se sorrisse e me alegrasse num momento inadequado e sentisse o coração pesado e chorasse na hora errada. Muitas coisas poderia eu dizer... mas no momento meu coração só chora! Porém, devo declarar que me sinto muito grata por ter tido a Frau Hilbers em nossas vidas e por todo o bem que ela nos fez!

     Três "baixas" em apenas um mês! Ontem, 6 de novembro, me deparo com a lembrança de 1 mês da morte do Reve. Hoje minha família anunciou a Missa de 7o dia do meu tio e, coincidentemente, hoje também, quando me sinto tão esquisita frente a tudo isso, foi-me lembrado pela Liz Valente que faz dez anos que o Lelê, jovem amigo querido, se foi em virtude de um cancêr... (Dez anos de despedida)

     E por isso... e assim... sinto-a, a morte, rondando, ... não a mim, mas esse meu tempo...
     É esquisito lidar com ela!
     E porque sei que escrever é, entre outras coisas, terapêutico, cá estou, para afugentar os fantasmas e um pouco da tristeza do coração!
   
     E deixo-me consolar novamente (e quem sabe você também) com o maravilhoso texto  "O Enterro da Morte", cuja autoria é de um dos falecidos desses últimos dias, o Reverendo Élben César, meu querido Reve. Eu creio, como ele, que um dia, diremos juntos "Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão? (1Co15.55).
   
     Eu creio, que um dia "não haverá mais morte, nem tristeza, nem choro, nem dor, pois a antiga ordem já passou" (Ap. 21.4).