segunda-feira, 19 de agosto de 2024

A louça na pia

Lavava a louça devagar, suspirando...
O prato fora da avó, louça antiga. Os talheres de prata, já danificados, presente de uma amiga alemã que não queria heranças desagradáveis. É que os talheres tinham pertencido ao avô, datavam de antes da primeira guerra e sua relação com toda a família sempre foi muito delicada.
E as lembranças iam pipocando na mente conforme a louça que ensaboava ou enxaguava.
Percebeu-se lavando apenas um prato, um jogo de talher, uma panela pequena, uma frigideira igualmente pequena. Havia feito seu almoço e agora adiantava o serviço pra ficar com a tarde mais livre. Hoje era tão mais fácil... mas isso não queria dizer que era melhor!
Antigamente fazia comida pra ela, para o marido e para os 2 filhos. Sempre havia um ou mais agregados também, amigos dos meninos, primos e familiares, alguém que teria vindo passar o dia na cidade e precisava de pouso, ou o lixeiro que perdera a hora do cafezinho e se apresentou para o almoço... 
Fato era que sempre havia mais alguém, além da sua família. A porta estava sempre aberta e também o coração.
E as pessoas iam entrando, sempre encontrando acolhida.
Mas em algum momento da vida, e ela não sabe precisar quando, as pessoas não entravam mais... as pessoas foram saindo devagar, devagar... e hoje ela precisava cozinhar para uma ou duas pessoas só e a louça se reduzira radicalmente.
Onde estavam todos?
O marido mal parava em casa. Vivia às voltas com as consultorias da vida, com pavor de ficar à toa. Havia se aposentado fazia pouco tempo e não conseguiu se resolver muito bem com a "inatividade". E ela que havia feito tantos planos pra quando ele se aposentasse... nem almoçar juntos, almoçavam mais. E ela sentia essa distância entre eles, parecia que não tinham mais muita coisa em comum. Por um tempo doeu, machucou, mas agora parece que o coração já havia se acostumado. Coisa esquisita essa de se acostumar com as coisas tristes... 
Os filhos saíram de casa relativamente cedo. Cada um tomou seu rumo, foram estudar em cidades melhores. Aquele buraco não os merecia, dizia sempre o pai.
Uma coisa lhe trazia um alento, a esperança de poder ser avó. Mas sempre que conversava algo a respeito com os filhos, eles desconversavam. Mas, quem sabe um dia, pensava ela.
Lembrava-se sempre de sua avó que dizia "trate de ter pelo menos uma filha mulher, se quiser ter amparo e companhia na velhice. Filho de filho é uma coisa, Filho de filha é outra coisa!", se referindo ao fato de netos que são filhos de nossas filhas serem mais achegados aos avós, via de regra.
E a vida corria assim, monótona, meio sem propósito.
Tentava marcar um café com alguma amiga, mas quase nenhuma sobrara. Algumas seguiram com seus filhos para uma cidade "melhor", outras já não tinham o mesmo entusiasmo para uma tarde entre amigas. Vez ou outra conseguia encontrar com Marinete ou Dora, mas elas nem sempre tinham disposição ou tempo. Marinete andava ocupada com 3 netos já, e Dora precisava dar assistência constante aos pais que, já bem idosos, moravam com ela e precisavam de seus cuidados.
Bem, pelo menos disso ela se livrou... seus pais já não eram mais vivos!
Naquela tarde tomou café sozinha novamente... não lavou a louça depois. Não fez janta, o marido estava com clientes. Comeu qualquer coisa e de novo largou ali a louça suja. Não era do seu feitio, mas vez ou outra se rebelava contra as tais obrigações diárias.
Foi se deitar tarde, olhando um ou outro programa desinteressante na TV. O marido ainda não havia chegado.
Deitou, suspirou fundo e... se foi!
A casa vazia, a mente vazia, o coração vazio...
A pia cheia, mas aquela louça não era mais tarefa dela.

Um comentário:

  1. Amei o texto! Muito bem escrito, fluido e emocionante. O texto suscita ótimas reflexões, pois você conseguiu retratar a vida de muitas mulheres e depende de cada uma de nós não chegarmos a esse lugar!

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